Lesões  cerebrais  na  anemia  falciforme - 
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Anemia Falciforme

Definição.  Anemia hemolítica crônica causada por mutação pontual que resulta na substituição do 6º amino-ácido (valina por ácido glutâmico) na cadeia beta da globina. A proteína resultante, chamada hemoglobina S, sofre polimerização em baixa tensão de oxigênio. As hemácias ficam rígidas, alongadas, recurvadas, com extremidades ponteagudas, lembrando uma foice. Tendem a agregar-se e bloquear pequenos vasos, resultando em agregação plaquetária, deposição de fibrina, isquemia e infarto. As hemácias falcizadas aderem à íntima dos vasos, com lesão da parede vascular, que eventualmente sofre fibrose e redução da luz. 
Os pacientes afetados podem ser homo ou heterozigotos para o gene da HbS, mas nos heterozigotos a doença é menos grave.
 

Falcização de hemácias maternas na placenta, causada por circulação sanguínea lenta nos espaços intervilosos.  Mãe é portadora de  anemia falciforme. As hemácias fetais (nos vasos das vilosidades coriais) são normais. 

Anemia falciforme e doença cérebro vascular. 

De todas as anemias, a anemia falciforme é a mais comumente associada a doença cérebro-vascular, e a principal causa de acidente vascular cerebral (AVC) na infância. Estes ocorrem em cerca de 15% das crianças com a doença, a grande maioria antes dos 15 anos. Infartos cerebrais correspondem a 75% e hemorragias a 20% dos casos. As alterações são comumente bilaterais e assimétricas. 

Clínica.  As manifestações neurológicas da anemia falciforme são classificadas em 
a) decréscimo progressivo das funções cognitivas (ou AVC silencioso); 
b) déficit neurológico focal de início súbito (AVC) e 
c) cefaléia e meningismo por hemorragia subaracnóidea (raro). 

Infartos cerebrais raramente são fatais, mas se recorrentes, resultam em déficits motores, cognitivos e de linguagem. Hemorragias resultam em morte em cerca de 1/4 dos pacientes.  Acidentes vasculares seriam a causa do óbito em 1/10 dos casos de anemia falciforme. 

Epidemiologia.  Estudos na região de Washington e Baltimore (EUA) mostraram que crianças com anemia falciforme, quando comparadas com crianças sadias da mesma faixa etária, têm aumento de 221 vezes no risco de sofrer um AVC, e de 410 vezes de sofrer um infarto cerebral.  Cerca de 11% dos pacientes terão tido um AVC clinicamente aparente na idade de 20 anos, e 24% aos 45 anos. O risco do primeiro AVC é máximo durante a primeira década de vida. As hemorragias são mais comuns na 3a. década. 

Estudos de imagem.  TC e RM em pacientes com anemia falciforme raramente usam contraste.  Agentes contrastantes hipertônicos para TC podem precipitar uma crise de falcização. Nas lesões crônicas da doença não há mais alterações na barreira hemoencefálica, portanto não há impregnação. 

Pacientes podem mostrar infartos clássicos, freqüentemente múltiplos, lesões isquêmicas em zona de fronteiras arteriais, principalmente no limite entre os territórios das artérias cerebrais anteriores e médias, e atrofia focal ou generalizada. É comum que a calota craniana esteja espessada devido à hemopoiese aumentada nos espaços diplóicos. 
 

Fem.  25 a. Primeiro episódio de AVC aos 8 anos de idade.  Infartos antigos extensos nos territórios de ambas Aa. cerebrais médias.  Axial, T2. Coronal, sagital, T1 sem contraste. 
Masc.  13 a. Primeiro episódio de AVC isquêmico aos 5 anos. Infartos extensos no território carotídeo E (Aa. cerebrais anterior e média).  T1 sem contraste. 
Foto à E, masc.  22 a. Grande infarto antigo no território da A. cerebral média E.  Corte axial em T2.  Foto à D, fem. 19 a. Infartos nos territórios da A. cerebral anterior D e em ramos posteriores da A. cerebral média E. Lesões em zona de fronteira na substância branca.  Axial, FLAIR. 
Fem.  27 a.  Anemia falciforme diagnosticada aos 9 anos. AVC isquêmico aos 12 anos, com hemiparesia D residual. Extensas lesões de zona de fronteira arterial na substância branca de ambos hemisférios, com cavitações à E.  Cortes axiais em T1 sem contraste e FLAIR. Corte coronal em FLAIR. 
Masc.  18 a.  Anemia falciforme diagnosticada na idade de 1 ano, primeiro episódio isquêmico com 7 anos.  Lacunas (setas) nos núcleos da base. Lesões de zona de fronteira na substância branca dos fórceps menores e maiores, e periventricular.  Cortes axiais, T1, e T2; corte coronal em FLAIR. 

A angioressonância é de grande valia na avaliação dos grandes vasos cerebrais. Mostra estenoses e oclusões de grandes troncos, e os pequenos vasos da circulação colateral, que podem chegar a um padrão do tipo moyamoya.  O território carotídeo é muito mais afetado que o vértebro-basilar. 
 

Angioressonância em um caso de anemia falciforme (fem. 25 a), na coluna da E, comparada a um exame normal (fem. 28 a) nas fotos à D. Projeções nos planos axial, coronal e sagital.  No caso de anemia falciforme, intensa pobreza na vascularização cerebral, principalmente no território carotídeo.  Para detalhes, clique nas fotos para ir aos casos. Clique para casos de angioressonância normal, arterial (A) (B), venosa (A) (B) e para arteriografia digital normal
ANEMIA  FALCIFORME NORMAL

Em um trabalho de angiografia cerebral em 7 pacientes com anemia falciforme e AVCs, foram observados estenose ou oclusão de grandes artérias intracranianas em 6 casos. As artérias carótidas internas supraclinoidéas foram afetadas em todos os casos, com menor freqüência as artérias cerebrais médias e anteriores, e relativa preservação da circulação posterior. Dois pacientes tinham colaterais na circulação basal, compatível com a síndrome de moyamoya.  Achados semelhantes têm sido relatados em 20 a 40% dos pacientes com anemia falciforme e AVC. 

Em outro estudo de neuroimagem em 25 pacientes com anemia falciforme e AVC, 41% tinham infartos cerebrais compatíveis com oclusão de grandes vasos da circulação cerebral anterior, e 31% tinham infartos em zona de fronteira arterial, que provavelmente derivavam também de vasculopatia de grandes vasos.  Em outro estudo de 18 pacientes por RM, 16 tinham infartos em zona de fronteira, 5 tinham oclusões de ramos da A. cerebral média e 4 tinham infartos de núcleos da base.  Um estudo neuropatológico revelou infartos na fronteira entre as Aa. cerebrais anteriores e médias em todos pacientes com infarto cerebral prévio. 

Doença oclusiva de grandes vasos não explica todos AVCs em pacientes com anemia falciforme. Há uma pequena percentagem de pacientes com infarto agudo mas angiografia normal. Também há relatos neuropatológicos de espessamento arteriolar difuso e microinfartos na substância branca profunda. A ausência de doença de grandes vasos é especialmente notada nos chamados ‘infartos silenciosos’, sugerindo que sejam devidos a oclusão das artérias penetrantes ou perfurantes. São infartos pequenos (85% são <s que 1,5 cm) e principalmente distribuídos na substância branca dos lobos frontais e parietais. São chamados lacunas por alguns autores, mas a distribuição é claramente diferente das lacunas da vasculopatia hipertensiva (que predominam nos núcleos da base, ver, link). Lesões múltiplas, pequenas e próximas entre si no centro semioval podem ser resultantes de doença oclusiva de grandes vasos e não de doença de artérias penetrantes. Portanto, é melhor evitar o termo lacuna para estas lesões. 

Hemorragias intracranianas não são raras em adultos com anemia falciforme, e provavelmente se devem à ruptura de pequenos vasos fragilizados. Aneurismas são comuns, freqüentemente múltiplos e mais numerosos no sistema vértebro-basilar. Há vários relatos de hemorragia subaracnóidea em pacientes com a doença.  Abaixo, um raro caso de infarto hemorrágico do cerebelo em uma criança de 6 meses com anemia falciforme. 
 

Caso raro de infarto hemorrágico do córtex cerebelar na anemia falciforme.  Criança de 6 meses, causa de óbito broncopneumonia, septicemia.  Necrose hemorrágica do cerebelo foi achado de autópsia. Hemorragias petequiais disseminadas, associadas a trombose de capilares por hemácias falcizadas. Restante do cérebro e outros órgãos não mostravam alterações semelhantes. 

Patogênese dos AVCs na anemia falciforme.   A causa dos AVCs na doença é heterogênea. Infartos predominam em crianças, hemorragias em adultos.  O subtipo mais comum de infarto é o de zona de fronteira arterial entre os territórios da ACA e ACM.  Este tipo se deve provavelmente à hiperemia de base na circulação cerebral, que por sua vez se deve à dilatação do leito vascular cerebral para compensar a anemia e presença de eritrócitos falcizados. Durante stress sistêmico, há falta de reserva vascular cerebral e falhas de perfusão ocorrem distalmente a estenoses fixas. Em outros casos, atribui-se a oclusão de vasos médios ou grandes, embolismo de uma artéria grande para artérias menores, ou embolia gordurosa (secundária a infarto da medula óssea hiperplásica). 

Hemácias falcizadas e endotélio.   Hemácias falcizadas são anormalmente adesivas ao endotélio, até 20 vezes mais que hemácias normais, em termos da força necessária para destacá-las. A adesão ocorre principalmente em capilares e vênulas onde a velocidade do sangue é menor. A maior adesividade pode resultar de diferentes mecanismos e variar com polimorfismos nas proteínas de adesão, como a trombospondina. 

As conseqüências da adesão são duas: 

Por um lado, leva ao aprisionamento de mais hemácias, prolonga o tempo de trânsito do sangue na microcirculação, causa anóxia e leva à polimerização da HbS, resultando em vaso-oclusão. Este mecanismo provavelmente é importante nos infartos de pequenas artérias penetrantes, que correspondem clinicamente aos chamados infartos silenciosos. 

Em outra linha, adesão dos eritrócitos falcizados ativa as células endoteliais, promovendo a síntese de vasoconstritores (endotelina 1), inibe vasorelaxação e aumenta a expressão superficial de outras moléculas de adesão, como VCAM e ICAM.  Além disso, durante a reperfusão após uma fase de vasooclusão, há produção de espécies reativas de oxigênio, inclusive do radical tóxico peroxinitrito. Em conseqüência, estabelece-se um estado pró-inflamatório, manifestado por adesão leucocitária e agregação plaquetária. Há liberação de tromboplastina ou fator tecidual pelas células lesadas, o que favorece a coagulação pela via extrínseca.  Mais recentemente, tem-se atribuído papel para a hemólise intravascular na gênese das lesões (para detalhes, ver revisão por Switzer et al.). 

Exame histológico de vasos intracranianos de grande e médio calibre revelaram espessamento não inflamatório da íntima por proliferação de fibroblastos e células musculares lisas, fragmentação e duplicação da membrana elástica interna, e trombose.  Inicialmente, cogitou-se que as lesões de íntima seriam secundárias a oclusão dos vasa vasorum, mas depois demonstrou-se ausência de vasa vasorum nos grandes vasos intracranianos.  Postulou-se, então, que a proliferação intimal resulte de lesão endotelial pelos eritrócitos falcizados. 
As lesões ocorrem principalmente em segmentos arteriais sujeitos a grande stress hemodinâmico, devido a mudanças abruptas de direção do vaso como no sifão carotídeo, ou pontos de bifurcação (como na divisão da A. carótida interna em ACA e ACM). 

Um fator complicante na anemia falciforme é que o fluxo sanguíneo cerebral é mais rápido, até o dobro do fluxo em indivíduos normais, em conseqüência da anemia. A intensa anemia também favorece os infartos em zona de fronteira, já que o sangue que chega a estas pode estar insuficientemente oxigenado. Os infartos na substância branca profunda correspondem clinicamente aos chamados infartos silenciosos. Estes indicam risco aumentado de infartos eloqüentes futuros. 

Os eventos vasculares agudos, como oclusão e infarto, são provavelmente relacionados a trombose, que pode ocorrer mesmo com mínimo grau de estenose. 

O dano à parede vascular pode também resultar na formação de aneurismas, que são mais comuns em pacientes com anemia falciforme que na população em geral. 

Principal fonte:

Switzer JA, Hess DC, Nichols FT, Adams RJ.  Pathophysiology and treatment of stroke in sickle-cell disease: present and future.  Lancet Neurol. 5: 501-12, 2006. (Artigo de revisão).

Outras fontes: 

Barkovich AJ. Pediatric Neuroimaging.  4th Ed. Lippincott Williams & Wilkins, Philadelphia, 2005.  p. 908-11. 

Debaun MR, Derdeyn CP, McKinstry RC 3rd  Etiology of strokes in children with sickle cell anemia.  Ment Retard Dev Disabil Res Rev. 12: 192-9, 2006

Kalimo H, Kaste M, Haltia M. Vascular diseases. Chapter 7 in Graham DI, Lantos PL (eds) Greenfield’s Neuropathology.  6th Ed. Arnold, London, 1997.  p. 356. 

Osborn AG.  Diagnostic Neuroradiology. Mosby, St. Louis, 1994. p. 372-3. 

Zimmerman RA. MRI/MRA evaluation of sickle cell disease of the brain. Pediatr Radiol 35: 249-57, 2005. 

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