SÍNDROMES
MIELODISPLÁSICAS
-
As síndromes
mielodisplásicas (SMD) constituem um grupo heterogêneo de
anomalias crônicas, que apresentam em comum a redução
de uma ou mais linhagens hemopoéticas, responsável por mono,
bi ou pancitopenia; esta redução deve-se a anormalidades
genéticas clonais da célula totipotente hematopoética.
-
Além
desta característica, as SMD podem apresentar graus variados de
risco de evolução para leucemia aguda, o que lhe valeu a
designação errônea de “pré-leucemia”; este termo
é impróprio, pois nem sempre há evolução
para leucemia aguda (LA);
-
Grande parte
dos pacientes que padecem de SMD falecem em conseqüência de
complicações decorrentes das citopenias, como infecções
(decorrentes da neutropenia) e hemorragias (decorrentes da plaquetopenia).
Apenas uma parte dos indivíduos desenvolverá LA, em tempos
variáveis, dependendo do tipo de SMD (ver Quadro 1, abaixo). A exata
incidência de SMD na população é difícil
de ser estimada.
Quadro
1: Classificação Franco-Americana-Britânica (FAB) das
SMD
____________________________________________________________
-
AR (anemia refratária);
-
ARSA (anemia refratária com sideroblastos em anel);
-
AREB (anemia refratária com excesso de blastos);
-
AREB-t. (anemia refratária com excesso de blastos em transformação);
_____________________________________________________________
|
HISTÓRICO
Os diferentes
tipos de SMD foram reconhecidos como entidades clínicas já
em 1938 por Rhoades e Barker, primeiramente em um grande grupo de anemias
refratárias (AR) a tratamento (em oposição às
anemias decorrentes de carência alimentar, que respondem à
reposição dos elementos em falta no organismo).
Os pacientes
portadores de AR necessitam, desta forma, de reposição transfusional
dos elementos sangüíneos, como ocorre nos indivíduos
com anemia aplásica (AA). Diferentemente desta, entretanto, freqüentemente
a medula óssea dos indivíduos com AR é normo ou hipercelular.
Apenas em pequena porcentagem dos casos a medula é hipocelular,
causando problemas no diagnóstico diferencial morfológico
com AA.
Outro grupo
de processos patológicos reconhecido no passado foi denominado pré-leucemia,
pois eram condições que evoluiam com grande freqüência
para LA; o termo “anemia pré-leucêmica” foi cunhado por Hamilton-Paterson
em 1949 e “pré-leucemia” por Block e cols em 1953. À
medida que que estes dois grupos de doenças foram estudados em maior
profundidade, chegou-se a uma relativa unificação de conceitos,
englobando as AR e as pré-leucemias num grupo denominado síndromes
mielodisplásicas (SMD).
PATOGÊNESE
-
A patogênese
das SMD primárias é desconhecida. Acredita-se que fatores
inerentes à senescência hemopoética relacionada à
idade desempenhem um papel importante como fator iniciador precoce, levando
à expansão de um clone geneticamente instável.
Alterações moleculares (detectadas mais tardiamente no curso
da doença) representariam fatores adicionais que confeririam vantagem
seletiva de proliferação celular.
-
Nas últimas
décadas tem ficado mais evidente que indivíduos submetidos
a radio e quimioterapia, ou expostos cronicamente a fatores ambientais
(radiação, benzeno) têm maior risco de desenvolver
LA; esta, particularmente a leucemia mielóide aguda, pode ser precedida
de meses ou anos por uma SMD; estes pacientes também podem falecer
em decorrência das complicações da hemopoese ineficaz,
mesmo sem desenvolver LA franca. Nestes casos, pelo fato de haver
histórico de exposição prévia a agentes tóxicos,
a SMD é designada como secundária. Além do relato
de contacto com agentes tóxicos, a SMD secundária difere
da primária, pois pode atingir qualquer faixa etária.
CLÍNICA
Clinicamente,
as SMD caracterizam-se por acometer preferencialmente adultos mais velhos,
com média por volta dos 70 anos; o acometimento de crianças
e jovens é pouco freqüente. A sintomatologia é dependente
da linhagem hemopoética acometida, sendo mais freqüentes os
sinais e sintomas secundários à anemia; é comum o
paciente contar história de tratamento crônico e refratário
a reposição de ferro e vitaminas do complexo B, ou ter tido
necessidade de transfusão sangüínea prévia. História
de infecções ou fenômenos hemorrágicos (petéquias,
equimoses, gengivorragia, epistaxis) pode ser relatada.
Porém,
há casos em que o primeiro diagnóstico de um processo de
insuficiência medular é feito através de um hemograma
rotineiro, onde se constata uma ou mais citopenias. Nestas situações,
o curso clínico é crônico e o quadro hematológico
corresponde ao das AR.
QUADRO LABORATORIAL
Na anemia
refratária (AR) a contagem de blastos (células imaturas atípicas
das linhagens hemopoéticas) na medula óssea deve ser inferior
a 5%, enquanto que os blastos não devem estar presentes no sangue
periférico, ou, se estiverem, não devem exceder 1% dos elementos
nucleados.
Em outro
grupo de AR, o exame do mielograma revela grande número de sideroblastos
em anel: é a chamada anemia refratária com sideroblastos
em anel (ARSA). Na ARSA, estas células devem corresponder a
pelo menos 15% dos elementos nucleados medulares. Os sideroblastos em anel
são visualizados como eritroblastos contendo depósitos granulares
perinucleares de ferro, formando um colar, visualizados à reação
citoquímica do azul da Prússia (ou de Perls). A ARSA pode
conter apenas atipias na série eritroblástica ou também
nas séries granulocítica e megacariocítica. A sobrevida
de 5 anos difere nos dois casos, sendo de cerca de 70% quando as atipias
são isoladas na série eritróide e de 20% quando estas
estão presentes nas demais séries.
À
medida que a contagem de blastos cresce na medula e no sangue periférico,
temos as anemias refratárias com excesso de blastos (AREB).
Se a contagem de blastos medulares estiver entre 5 e 20% e no sangue periférico
for inferior a 5%, designaremos a AR apenas como excesso de blastos. Caso
os blastos medulares excedam os 20% e não ultrapassem os 30% (limite
para o diagnóstico de uma LA), com blastos no sangue periférico
no limite inferior a 5%, a AREB será designada como em transformação
(AREB-t).
A evolução
clínica pode ser de poucos meses (na AREB-t e AREB) até alguns
anos (AR e ARSA). O maior risco de desenvolvimento de LA ocorre entre a
AREB-t e a AREB. A LA não é necessariamente mielóide
(mais freqüente), mas pode ser linfóide ou mesmo mista. Este
fato corrobora o defeito molecular em células hemopoéticas
totipotentes muito primitivas.
Além
da história clínica e do exame físico
e de hemograma, o diagnóstico de SMD inclui o estudo da
medula óssea (citologia, citoquímica e histologia). Nos
esfregaços
citológicos, além dos blastos, são observadas
atipias nas três séries hemopoéticas.
-
Na eritroblástica
vemos a diseritropoese (sideroblastos em anel, multinucleação
de elementos, fragmentação nuclear de vários tamanhos,
irregularidades nos contornos nucleares e irregularidades na coloração
citoplasmática.
-
Na granulocítica
(disgranulopoese) podemos encontrar redução ou ausência
de grânulos (hipo ou agranulação), persistência
de basofilia nas células maduras, hipossegmentação
nuclear (anomalia semelhante à de Pelger-Huët, também
denominada pseudo-Pelger-Huët), ou hipersegmentação
nuclear.
-
A dismegacariopoese
é representada pelos micromegacariócitos (elementos
anões), megacariócitos grandes mononucleados, megacariócitos
com múltiplos pequenos núcleos separados, além de
poderem apresentar grânulos grosseiros e anormais;
O exame
citoquímico pode auxiliar na definição da linhagem
de algumas células atípicas ou imaturas, ou mesmo na detecção
dos depósitos anômalos de ferro (sideroblastos em anel).
A biópsia
de medula óssea auxilia na determinação da celularidade
(geralmente esta encontra-se normal ou aumentada), anomalias topográficas
dos elementos hemopoéticos (agrupamentos de megacariócitos
atípicos, agrupamentos de elementos imaturos longe de seu local
habitual, que é a trabécula óssea) e atipias de elementos
isolados. No caso de tratar-se de medula óssea hipocelular, nossa
experiência tem demonstrado que a presença de megacariócitos
atípicos agrupados são forte indício de SMD hipocelular,
afastando o diagnóstico de uma anemia aplásica. O exame histológico
da medula óssea ajuda também a afastar causas secundárias
de dismielopoese (atipias das séries hemopoéticas), como
é o caso de certas infecções (como pelo vírus
HIV) e infiltração por neoplasias, em particular por linfomas
malignos;
Importante
ferramenta no diagnóstico das SMD é representada pela citogenética.
Porquanto a ausência de anomalias citogenéticas não
afaste o diagnóstico de SMD, a presença das mesmas é
ponto muito favorável ao seu diagnóstico. Ainda não
há um marcador citogenético específico para SMD ou
para cada um de seus tipos. A presença de alterações
citogenéticas múltiplas representa fator de pior prognóstico
que as simples ou cariótipo normal.
Todos os
dados clínicos e laboratoriais devem ser avaliados cuidadosamente
em conjunto para o diagnóstico de uma SMD. Uma detalhada exclusão
de causas secundárias de atipias celulares ou de citopenias deve
ser levada a cabo, por vezes com prova terapêutica precedendo o diagnóstico
formal (ex., através de tratamento com ferro e componentes do complexo
vitamínico B);
Neste grupo
de doenças, o fígado e o baço geralmente não
se apresentam aumentados, ao contrário do que ocorre nas síndromes
mieloproliferativas, em especial nas crônicas. Na vigência
de transformação leucêmica, os blastos podem infiltrar
estes órgãos, causando hepato- e esplenomegalia. Nos casos
em que ocorre esplenomegalia, o seqüestro de elementos anômalos
(e não um processo proliferativo) parece ser a sua causa. Infecções
decorrentes da função anômala da série mielomonocítica
podem ser causa de hepatoesplenomegalia transitória. Em pacientes
com histórico de transfusões sangüíneas repetidas
encontra-se intensa hemossiderose nos órgãos onde o sistema
mononuclear-fagocítico é proeminente (fígado, baço,
linfonodos e medula óssea);
PROGNÓSTICO
A porcentagem
de blastos é o fator prognóstico isolado mais importante
nas SMD. O prognóstico de cada subtipo de SMD, no que tange à
evolução para LA, varia de menos que 10% na síndrome
do 5q-, AR e ARSA, cerca de 30% na AREB, até mais de 50% na AREB-t.
O prognóstico geral de mortalidade nos subtipos de SMD também
é significativamente pior para a AREB e AREB-t do que para a AR
e ARSA. A idade mais avançada constitui fator de pior prognóstico,
bem como a existência de critérios para se considerar a SMD
como secundária.
TRATAMENTO
O tratamento
visa o controle das complicações (infecções,
anemia e hemorragia). Atualmente, tem-se empregado cada vez mais o transplante
de medula óssea, tentando-se erradicar os clones totipotentes
anômalos do paciente e inserindo-se clones normais de um doador compatível.
A quimioterapia está indicada quando ocorre transformação
leucêmica. Nestes casos, a resposta à quimioterapia tende
a ser pior que em indivíduos cuja LA não foi precedida por
SMD.